2007/11/19

Refém do Silêncio

Profissional muito devotado ao trabalho, o acidente vascular cerebral era um desafio que nunca estivera no seu planejamento.

As sensações, o medo de perder a vida, a internação às pressas em um modesto hospital beira de estrada, nada disso fazia sentido. Havia ainda muito a ser feito! O desconforto físico era admoestado pelo recorrente ímpeto de querer concluir o relatório que ficara sobre a escrivaninha. Ninguém poderia concluí-lo sem o meu toque pessoal, pensou.

As palavras não saíam, o corpo também não correspondia. O segundo constrangimento, após ter perdido o posto de homem de aço, foi não poder comunicar que necessitava ir ao sanitário. O vazamento foi compreendido pelos auxiliares de enfermagem que o colocavam sobre a maca. O choro indignado, constrangido e abafado arroxeou a pele. O plantonista alertou: - fique calmo, não se emocione!

A caminho da unidade de emergência a vida passara muito rápido. Apesar dos sessenta anos, sentia-se como um homem de trinta. Queria saber se a namorada estava bem, não queria preocupar os filhos, mas era inútil. Aos prantos, os dois acompanhavam o trajeto, testando o limite da paciência da equipe médica.

O terceiro ato de humilhação foi a retirada da prótese dentária. Ninguém soube do segredo tão bem guardado ao longo de anos! Ser despido na frente de profissionais vestidos de verde em uma fria sala já não era o maior dos problemas. O choro voltou. Os pedidos de calma acompanharam a administração de medicamentos por via venosa.

O corpo ficou mais leve. Subiu e desceu fazendo exames. Tudo o que queria é que alguém dissesse qual era a sua condição, o que poderia acontecer, quais as notícias do final de tarde, estava chovendo lá fora? Somente depois de provocados, os de verde e branco revelavam a dois familiares o plano de atendimento: 72 horas de observação na unidade de terapia intensiva.

Dia e noite olhando para a luminária do teto da UTI: era o terceiro círculo do inferno. Só o lado esquerdo estava paralisado, não os pensamentos. Infelizmente, só diagnosticavam o que estava abaixo das pálpebras, não o frenético arregalar e movimentar de olhos, o único aliado do raciocínio. Um familiar fora autorizado a visitá-lo. Comunicava-se com os seus assemelhados em uma língua estranha, codificada, mas se limitava a repetir: - calma... você está sendo acompanhado por uma equipe competente! Pare de chorar!

Os detalhes! Faltavam os detalhes! A livre expressão é um direito do homem! Quando se torna avô, os direitos vão além da fria lei dos tribunais! Será que guardaram a prótese ou expuseram a todos? A ex-mulher havia sido avisada? E o prazo para entregar o relatório ao cliente? Quem vai viajar na próxima semana para discutir os detalhes do projeto? Dentre todos os pecados mortais, a ira é que tinha sua predileção.

De momento, era impossível sequer chamar a atenção dos apressadinhos, que só iam ao seu leito para checar se o soro tinha acabado ou para lhe trocar a fralda. O que ele precisava era de uma pessoa inteligente, disposta a se comunicar. Nenhum bípede dispunha de tempo para decifrar seus grunhidos. O monólogo era uma determinação a ser cumprida. As tácitas orientações decorriam de um secreto pergaminho, jamais achado em qualquer ruína, mas muito respeitado até pelos que nada entendem ou pertencem à ordem dos que cuidam dos enfermos.

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