A carona até o centro da cidade havia sido providencial. O carro já estava visado e decidiram que era melhor se separar.
Com o sentimento de estar sendo observado, correu sem olhar para trás. Nas ruelas escuras no amanhecer chuvoso, poucos circulavam pela cidade vazia.
O desespero tomava conta do seu corpo e a vista não alcançava nenhum refugio, apenas as nuvens poderiam ser o esconderijo momentâneo. Numa rápida equação mental, pensou na possibilidade de se fazer das grades externas às janelas dos prédios uma escada para os pavimentos superiores de um velho edifício de escritório.
Meio sem acreditar, mas impelido pelo temor de ser capturado, rendeu-se ao seu id e começou a escalar o edifício. Quando se deu conta, estava no quarto pavimento, longe da vista da pequena circulação de pedestres. Enfim, teria condições de explorar as salas comerciais, ainda vazias, e aguardar o tempo passar.
Equilibrando-se no generoso parapeito que margeava as janelas, engatinhou por cada uma das alternativas. A primeira parecia um consultório de dentista, pela vaga percepção que teve através da janela. Fez força para abrir. Mesmo sendo de alumínio, parecia haver algo que trancava a abertura. Resignou-se e continuou. Passados dois escritórios avistou o que parecia ser um novo consultório de dentista. O descaso de alguns fez aquela manhã dissipar as nuvens e um largo sorriso ser aberto no seu rosto! Enfim, uma trégua do destino! Uma merecida pausa para lavar o rosto e ter alternativas de defesa com o arsenal do consultório, caso a violência tivesse que imperar.
Confessamente, havia algo de Newtoniano no ar. Pensou no avô ao constatar que o dono do consultório não trabalhava nem com bisturis, nem com agulhas! Que tipo de profissional era aquele que a odontologia criara? Nas paredes, somente próteses e espátulas. Um protista! Que sorte...
De todo a invasão não foi em vã. Limpou o rosto, bebeu um pouco de água, tirou o casaco molhado e vestiu o guarda-pó da Dra. Ivanete. Que bela forma de se aumentar a auto-estima.
O branco lhe caíra bem. De quebra, ganhara um maço de cigarros ao se remexer no bolso. Faltava só o isqueiro. Do sanitário, ligeiramente mais asseado do que o beco que dava acesso à entrada principal do prédio, nada lhe servira. Seguiu para o que julgou ser a recepção.
O relógio da parede assinalava 6:50. Pontualmente, o pessoal da higienização já começara o turno. Como abrir a porta de vidro do consultório? A servente empurrou o carrinho com o material deixando-o a poucos centímetros da entrada. Enquanto tentava revirava as gavetas do birô, foi surpreendido com uma saudação: - Bom dia, Doutor! Madrugou! O senhor é novo aqui?
Desconcertado, sorriu esperançoso. Emendou uma série de pensamentos estapafúrdios que soaram bem nos ouvidos na gentil alma do outro lado. A melhor das desculpas é que não sabia onde deixara a chave e que não queria esperar o pessoal chegar, pois tinha pressa em levar uns exames para outro ponto cidade. A solícita e crédula vivente de pronto quis chamar o porteiro, mas foi desencorajada.
- Quem sabe você me consegue uma chave-de-fenda em um escritório desses?
- É difícil, pelo horário, poucos estão abertos, respondeu a sempre sorridente Joana.
O coração voltou a bater em ritmo acelerado ao avistar um sujeito saindo do corredor. O zelador havia chegado com muitas histórias da baixa qualidade do material utilizado nas fechaduras das portas de vidro do edifício. Sacou do bolso algumas réplicas de chaves de consultórios que confiavam nele a guarda do patrimônio, para que se evitassem incidentes tristes como o incêndio que causara perdas totais em uma das salas no último ano.
Os relatos de anos de amizade com os proprietários de sala e os pormenores de registros de incêndio recheavam as tentativas de se fazer funcionar uma das chaves. Duas pessoas já não se faziam necessário na assistência e a redentora Joana retornou aos seus afazeres, reforçando as histórias do zelador a certa distância com sorrisos e onomatopéias.
Após intermináveis cinco minutos de monólogo e muitas chaves, a porta havia sido aberta! Milagres acontecem! O vitorioso zelador cumprira a missão! Sorrisos de todos os lados e uma última solicitação:
- Por favor, o senhor tranca agora a porta e avisa Ivanete que eu volto depois que fizer a entrega deste laudo, talvez depois do almoço.
- Certo, Doutor, claro, Doutor!, o sorridente sexagenário respondeu.
Despediu-se entre abertos de mão e elogios à destreza do senil ajudante. Receou permanecer no aguardo do elevador pelo provável tempo que levaria, o que poderia custar o fim da farsa. A posição de mãos cruzadas sobre o peito, cobrindo a inserção do nome da Dra. Ivanete foi válida enquanto os olhares do zelador estavam centrados na abertura da porta. Agora, recém libertos da tarefa, perscrutavam todo o novo Doutor do prédio, entre caretas sincronizadas ao ajuste dos óculos no rosto.
- O Senhor começou aqui tem muito tempo? Eu não tinha o visto o Senhor antes? É o seu primeiro dia, é?
- É, é... Eu volto logo, vou ali no andar de cima e volto mais tarde...
- Ah, não adianta, não. O senhor está querendo falar com o pessoal do 504? Eles só chegam depois das 8h. Tem o pessoal do 903 que também tem material que a Dra. Ivanete às vezes pega emprestado. Mas, pela hora, também não chegaram, não. O senhor não vai esperar o elevador?
A conversa findou com um novo obrigado ecoando da escadaria. Sem pressa, cada andar foi sendo observado. O último apresentava um padrão muito diferente dos demais.
A escadaria terminava em um amplo salão. Um piso frio dava um tom solene e rompia o silêncio do local. As duas únicas estruturas construídas capturaram a curiosidade. À esquerda, a porta do elevador tinha uma corrente chaveada, restringindo o acesso. No lado oposto, uma cabine com vidro à meia altura. Esforçou-se para reconhecer que era um confessionário! Mesmo trancado, conseguir ver uma capa de monge beneditino sobre a cadeira. Enquanto fitava os adornos do capuz da vestimenta, ouviu passos e se posicionou atrás da estrutura. Ao que parecia ser uma freira, cruzou o corredor e adentrou uma sala próxima ao elevador.
O chamado do medo o fez considerar como mais que suficiente o passeio e considerar o retorno para o seu contexto. Hesitante, avaliou que perigos poderiam encerrar um estreito vão de porta a sua frente, com uma escadaria que terminava longe do alcance da sua visão.
O desespero tomava conta do seu corpo e a vista não alcançava nenhum refugio, apenas as nuvens poderiam ser o esconderijo momentâneo. Numa rápida equação mental, pensou na possibilidade de se fazer das grades externas às janelas dos prédios uma escada para os pavimentos superiores de um velho edifício de escritório.
Meio sem acreditar, mas impelido pelo temor de ser capturado, rendeu-se ao seu id e começou a escalar o edifício. Quando se deu conta, estava no quarto pavimento, longe da vista da pequena circulação de pedestres. Enfim, teria condições de explorar as salas comerciais, ainda vazias, e aguardar o tempo passar.
Equilibrando-se no generoso parapeito que margeava as janelas, engatinhou por cada uma das alternativas. A primeira parecia um consultório de dentista, pela vaga percepção que teve através da janela. Fez força para abrir. Mesmo sendo de alumínio, parecia haver algo que trancava a abertura. Resignou-se e continuou. Passados dois escritórios avistou o que parecia ser um novo consultório de dentista. O descaso de alguns fez aquela manhã dissipar as nuvens e um largo sorriso ser aberto no seu rosto! Enfim, uma trégua do destino! Uma merecida pausa para lavar o rosto e ter alternativas de defesa com o arsenal do consultório, caso a violência tivesse que imperar.
Confessamente, havia algo de Newtoniano no ar. Pensou no avô ao constatar que o dono do consultório não trabalhava nem com bisturis, nem com agulhas! Que tipo de profissional era aquele que a odontologia criara? Nas paredes, somente próteses e espátulas. Um protista! Que sorte...
De todo a invasão não foi em vã. Limpou o rosto, bebeu um pouco de água, tirou o casaco molhado e vestiu o guarda-pó da Dra. Ivanete. Que bela forma de se aumentar a auto-estima.
O branco lhe caíra bem. De quebra, ganhara um maço de cigarros ao se remexer no bolso. Faltava só o isqueiro. Do sanitário, ligeiramente mais asseado do que o beco que dava acesso à entrada principal do prédio, nada lhe servira. Seguiu para o que julgou ser a recepção.
O relógio da parede assinalava 6:50. Pontualmente, o pessoal da higienização já começara o turno. Como abrir a porta de vidro do consultório? A servente empurrou o carrinho com o material deixando-o a poucos centímetros da entrada. Enquanto tentava revirava as gavetas do birô, foi surpreendido com uma saudação: - Bom dia, Doutor! Madrugou! O senhor é novo aqui?
Desconcertado, sorriu esperançoso. Emendou uma série de pensamentos estapafúrdios que soaram bem nos ouvidos na gentil alma do outro lado. A melhor das desculpas é que não sabia onde deixara a chave e que não queria esperar o pessoal chegar, pois tinha pressa em levar uns exames para outro ponto cidade. A solícita e crédula vivente de pronto quis chamar o porteiro, mas foi desencorajada.
- Quem sabe você me consegue uma chave-de-fenda em um escritório desses?
- É difícil, pelo horário, poucos estão abertos, respondeu a sempre sorridente Joana.
O coração voltou a bater em ritmo acelerado ao avistar um sujeito saindo do corredor. O zelador havia chegado com muitas histórias da baixa qualidade do material utilizado nas fechaduras das portas de vidro do edifício. Sacou do bolso algumas réplicas de chaves de consultórios que confiavam nele a guarda do patrimônio, para que se evitassem incidentes tristes como o incêndio que causara perdas totais em uma das salas no último ano.
Os relatos de anos de amizade com os proprietários de sala e os pormenores de registros de incêndio recheavam as tentativas de se fazer funcionar uma das chaves. Duas pessoas já não se faziam necessário na assistência e a redentora Joana retornou aos seus afazeres, reforçando as histórias do zelador a certa distância com sorrisos e onomatopéias.
Após intermináveis cinco minutos de monólogo e muitas chaves, a porta havia sido aberta! Milagres acontecem! O vitorioso zelador cumprira a missão! Sorrisos de todos os lados e uma última solicitação:
- Por favor, o senhor tranca agora a porta e avisa Ivanete que eu volto depois que fizer a entrega deste laudo, talvez depois do almoço.
- Certo, Doutor, claro, Doutor!, o sorridente sexagenário respondeu.
Despediu-se entre abertos de mão e elogios à destreza do senil ajudante. Receou permanecer no aguardo do elevador pelo provável tempo que levaria, o que poderia custar o fim da farsa. A posição de mãos cruzadas sobre o peito, cobrindo a inserção do nome da Dra. Ivanete foi válida enquanto os olhares do zelador estavam centrados na abertura da porta. Agora, recém libertos da tarefa, perscrutavam todo o novo Doutor do prédio, entre caretas sincronizadas ao ajuste dos óculos no rosto.
- O Senhor começou aqui tem muito tempo? Eu não tinha o visto o Senhor antes? É o seu primeiro dia, é?
- É, é... Eu volto logo, vou ali no andar de cima e volto mais tarde...
- Ah, não adianta, não. O senhor está querendo falar com o pessoal do 504? Eles só chegam depois das 8h. Tem o pessoal do 903 que também tem material que a Dra. Ivanete às vezes pega emprestado. Mas, pela hora, também não chegaram, não. O senhor não vai esperar o elevador?
A conversa findou com um novo obrigado ecoando da escadaria. Sem pressa, cada andar foi sendo observado. O último apresentava um padrão muito diferente dos demais.
A escadaria terminava em um amplo salão. Um piso frio dava um tom solene e rompia o silêncio do local. As duas únicas estruturas construídas capturaram a curiosidade. À esquerda, a porta do elevador tinha uma corrente chaveada, restringindo o acesso. No lado oposto, uma cabine com vidro à meia altura. Esforçou-se para reconhecer que era um confessionário! Mesmo trancado, conseguir ver uma capa de monge beneditino sobre a cadeira. Enquanto fitava os adornos do capuz da vestimenta, ouviu passos e se posicionou atrás da estrutura. Ao que parecia ser uma freira, cruzou o corredor e adentrou uma sala próxima ao elevador.
O chamado do medo o fez considerar como mais que suficiente o passeio e considerar o retorno para o seu contexto. Hesitante, avaliou que perigos poderiam encerrar um estreito vão de porta a sua frente, com uma escadaria que terminava longe do alcance da sua visão.
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