2007/06/30

Alvorada - parte 2

A carona até o centro da cidade havia sido providencial. O carro já estava visado e decidiram que era melhor se separar.
Com o sentimento de estar sendo observado, correu sem olhar para trás. Nas ruelas escuras no amanhecer chuvoso, poucos circulavam pela cidade vazia.
O desespero tomava conta do seu corpo e a vista não alcançava nenhum refugio, apenas as nuvens poderiam ser o esconderijo momentâneo. Numa rápida equação mental, pensou na possibilidade de se fazer das grades externas às janelas dos prédios uma escada para os pavimentos superiores de um velho edifício de escritório.
Meio sem acreditar, mas impelido pelo temor de ser capturado, rendeu-se ao seu id e começou a escalar o edifício. Quando se deu conta, estava no quarto pavimento, longe da vista da pequena circulação de pedestres. Enfim, teria condições de explorar as salas comerciais, ainda vazias, e aguardar o tempo passar.
Equilibrando-se no generoso parapeito que margeava as janelas, engatinhou por cada uma das alternativas. A primeira parecia um consultório de dentista, pela vaga percepção que teve através da janela. Fez força para abrir. Mesmo sendo de alumínio, parecia haver algo que trancava a abertura. Resignou-se e continuou. Passados dois escritórios avistou o que parecia ser um novo consultório de dentista. O descaso de alguns fez aquela manhã dissipar as nuvens e um largo sorriso ser aberto no seu rosto! Enfim, uma trégua do destino! Uma merecida pausa para lavar o rosto e ter alternativas de defesa com o arsenal do consultório, caso a violência tivesse que imperar.
Confessamente, havia algo de Newtoniano no ar. Pensou no avô ao constatar que o dono do consultório não trabalhava nem com bisturis, nem com agulhas! Que tipo de profissional era aquele que a odontologia criara? Nas paredes, somente próteses e espátulas. Um protista! Que sorte...
De todo a invasão não foi em vã. Limpou o rosto, bebeu um pouco de água, tirou o casaco molhado e vestiu o guarda-pó da Dra. Ivanete. Que bela forma de se aumentar a auto-estima.
O branco lhe caíra bem. De quebra, ganhara um maço de cigarros ao se remexer no bolso. Faltava só o isqueiro. Do sanitário, ligeiramente mais asseado do que o beco que dava acesso à entrada principal do prédio, nada lhe servira. Seguiu para o que julgou ser a recepção.
O relógio da parede assinalava 6:50. Pontualmente, o pessoal da higienização já começara o turno. Como abrir a porta de vidro do consultório? A servente empurrou o carrinho com o material deixando-o a poucos centímetros da entrada. Enquanto tentava revirava as gavetas do birô, foi surpreendido com uma saudação: - Bom dia, Doutor! Madrugou! O senhor é novo aqui?
Desconcertado, sorriu esperançoso. Emendou uma série de pensamentos estapafúrdios que soaram bem nos ouvidos na gentil alma do outro lado. A melhor das desculpas é que não sabia onde deixara a chave e que não queria esperar o pessoal chegar, pois tinha pressa em levar uns exames para outro ponto cidade. A solícita e crédula vivente de pronto quis chamar o porteiro, mas foi desencorajada.
- Quem sabe você me consegue uma chave-de-fenda em um escritório desses?
- É difícil, pelo horário, poucos estão abertos, respondeu a sempre sorridente Joana.
O coração voltou a bater em ritmo acelerado ao avistar um sujeito saindo do corredor. O zelador havia chegado com muitas histórias da baixa qualidade do material utilizado nas fechaduras das portas de vidro do edifício. Sacou do bolso algumas réplicas de chaves de consultórios que confiavam nele a guarda do patrimônio, para que se evitassem incidentes tristes como o incêndio que causara perdas totais em uma das salas no último ano.
Os relatos de anos de amizade com os proprietários de sala e os pormenores de registros de incêndio recheavam as tentativas de se fazer funcionar uma das chaves. Duas pessoas já não se faziam necessário na assistência e a redentora Joana retornou aos seus afazeres, reforçando as histórias do zelador a certa distância com sorrisos e onomatopéias.
Após intermináveis cinco minutos de monólogo e muitas chaves, a porta havia sido aberta! Milagres acontecem! O vitorioso zelador cumprira a missão! Sorrisos de todos os lados e uma última solicitação:
- Por favor, o senhor tranca agora a porta e avisa Ivanete que eu volto depois que fizer a entrega deste laudo, talvez depois do almoço.
- Certo, Doutor, claro, Doutor!, o sorridente sexagenário respondeu.
Despediu-se entre abertos de mão e elogios à destreza do senil ajudante. Receou permanecer no aguardo do elevador pelo provável tempo que levaria, o que poderia custar o fim da farsa. A posição de mãos cruzadas sobre o peito, cobrindo a inserção do nome da Dra. Ivanete foi válida enquanto os olhares do zelador estavam centrados na abertura da porta. Agora, recém libertos da tarefa, perscrutavam todo o novo Doutor do prédio, entre caretas sincronizadas ao ajuste dos óculos no rosto.
- O Senhor começou aqui tem muito tempo? Eu não tinha o visto o Senhor antes? É o seu primeiro dia, é?
- É, é... Eu volto logo, vou ali no andar de cima e volto mais tarde...
- Ah, não adianta, não. O senhor está querendo falar com o pessoal do 504? Eles só chegam depois das 8h. Tem o pessoal do 903 que também tem material que a Dra. Ivanete às vezes pega emprestado. Mas, pela hora, também não chegaram, não. O senhor não vai esperar o elevador?
A conversa findou com um novo obrigado ecoando da escadaria. Sem pressa, cada andar foi sendo observado. O último apresentava um padrão muito diferente dos demais.
A escadaria terminava em um amplo salão. Um piso frio dava um tom solene e rompia o silêncio do local. As duas únicas estruturas construídas capturaram a curiosidade. À esquerda, a porta do elevador tinha uma corrente chaveada, restringindo o acesso. No lado oposto, uma cabine com vidro à meia altura. Esforçou-se para reconhecer que era um confessionário! Mesmo trancado, conseguir ver uma capa de monge beneditino sobre a cadeira. Enquanto fitava os adornos do capuz da vestimenta, ouviu passos e se posicionou atrás da estrutura. Ao que parecia ser uma freira, cruzou o corredor e adentrou uma sala próxima ao elevador.
O chamado do medo o fez considerar como mais que suficiente o passeio e considerar o retorno para o seu contexto. Hesitante, avaliou que perigos poderiam encerrar um estreito vão de porta a sua frente, com uma escadaria que terminava longe do alcance da sua visão.


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2007/06/12

Tempo que foge

(Ricardo Gondim)

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados. Não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos. Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos para reverter a miséria do mundo.
Não vou mais a workshops onde se ensina como converter milhões usando uma fórmula de poucos pontos. Não quero que me convidem para eventos de um fim-de-semana com a proposta de abalar o milênio.
Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir estatutos, normas, procedimentos parlamentares e regimentos internos. Não gosto de assembléias ordinárias em que as organizações procuram se proteger e se perpetuar através de infindáveis detalhes organizacionais.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos. Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões de "confrontação", onde "tiramos fatos à limpo".
Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário do coral.
Já não tenho tempo para debater vírgulas, detalhes gramaticais sutis, ou sobre as diferentes traduções da Bíblia. Não quero ficar explicando porque gosto da Nova Versão Internacional das Escrituras, só porque há um grupo que a considera herética. Minha resposta será curta e delicada:- Gosto, e ponto final!
Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: "As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos". Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos.
Já não tenho tempo para ficar explicando aos medianos se estou ou não perdendo a fé porque admiro a poesia do Chico Buarque e do Vinicius de Moraes; a voz da Maria Bethânia; os livros de Machado de Assis, Thomas Mann e José Lins do Rego.
Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita para a "última hora"; não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados, e deseja andar humildemente com Deus.
Caminhar perto delas nunca será perda de tempo. Eu quero viver ao lado de gente humana, de seres impares como você que traz no coraçãoa singularidade das coisas e simplicidade da vida. O que importa nesta vida é viver bem, alegre e feliz... os bens materiais são importantes sim eles nos dão conforto, mas, os bens pereciveis, os valores do coração, estes sim, irão nos fazer felizes e trazer à tona a verdadeira felicidade!

2007/06/11

Julgando o tempo

"Because I know that time is always time
And place is always and only place
And what is actual is actual only for one time
And only for one place
I rejoice that things are as they are and
I renounce the blessed face
And renounce the voice
Because I cannot hope to turn again
Consequently I rejoice, having to construct something
Upon which to rejoice
And pray to God to have mercy upon us
And I pray that I may forget
These matters that with myself
I too much discuss
Too much explain
Because I do not hope to turn again
Let these words answer
For what is done, not to be done again
May the judgement not be too heavy upon us
Because these wings are no longer wings to fly
But merely vans to beat the air
The air which is now thoroughly small and dry
Smaller and dryer than the will
Teach us to care and not to careTeach us to sit still."

T.S.Eliot

"Por eu saber que tempo é sempre tempo
E lugar é sempre e somente lugar
E o que é real é real somente por um tempo
E somente para um lugar
Eu exalto que as coisas são como elas são e
Eu renuncio o rosto abençoado
E renuncio a voz
Por eu não poder desejar me transformar novamente
Consequentemente eu exalto, tendo que construir algo a que exaltar
E rogo a Deus que nos tenha compaixão
E eu rogo que eu possa esquecer
Estes assuntos que comigo mesmo tanto discuto
Tanto explico
Por não desejar me transformar novamente
Que estas palavras respondam
Pelo que foi feito, que não seja feito novamente
Que o julgamento não seja muito pesado sobre nós
Porque estas asas não são mais asas para voar
E sim meros leques para bater o ar
O ar que agora é completamente pequeno e seco
Menor e mais seco que a vontade
Nos ensine a nos importar e a não nos importar
Nos ensine a ficar imóveis."
T.S.Eliot